[Opinião] Assistir 'Espelhos' foi uma experiência contra a perda de experiência


13/02/2019 - Atualizado em 14/02/2019 - 318 visualizações

2 ESPELHOS, 1 ATOR, 3 TAREFAS E UMA TAREFA ZERO 
(não necessariamente nesta ordem)

Numa noite de domingo (20/05/2018), fui ao teatro do Sesc Florianópolis (Prainha) para assistir Espelhos, monólogo de Ney Piacentini com direção de Vivien Buckup. Tinha eu ali três tarefas.

A primeira era, obviamente, assistir à peça. A segunda: coletar dados para escrever uma crítica, convidada pelo Sesc, que produziu duas apresentações deste solo (uma às 18 horas e outra, às 20 horas, a que assisti). A terceira e última tarefa era a de rever um amigo e companheiro teatral, já que ambos contamos em nossa biografia artística o fato de termos pertencido ao Grupo A (de Teatro e Atividades Artísticas) de Florianópolis, do qual Ney foi fundador em 1978. Eu ingressei no grupo e em seu elenco (não havia diferença significativa entre um e outro naquilo que chamávamos de criação coletiva) depois, em 1983. São, enfim, estas as três tarefas distintas deste texto sobre um acontecimento teatral.

Sobre a expressão “acontecimento teatral”: já faz um tempo que venho procurando termos para nomear as artes da cena que me interessam e que não consigo chamar de “espetáculo”. Tampouco aceito a denominação “performance teatral”; mas, às vezes, chamo de “peça”. No caso de Espelhos, peça me parece pouco, dado que o que ocorreu no Sesc extrapola a cena na reunião de amigos/as, artistas e acadêmicos/as interessados/as em ver o que estaria “nosso” Ney “aprontando” na ilha.

Esta particularidade revela muito da necessariamente relativa objetividade deste meu texto, mas também parece ampliar seu alcance para além de “questões estéticas” sobre o “fazer teatral”. Em minha opinião, chamar Espelhos de acontecimento teatral em nada reduz a importância deste trabalho. Ao contrário, acessa algo que me parece caro ao teatro da Companhia do Latão (1)   na qual Ney completa em 2018 a maioridade (21 anos, dele e da companhia) , a saber: o caráter social do teatro que vive (e sobrevive) para além de considerações formalísticas e supostamente críticas do que quer que seja o que a gente faz quando expõe nossa arte ao público.

Neste sentido, agradeço ao Sesc por ter produzido mais do que sessões de uma peça. Ou melhor, por ter reconhecido nas apresentações de Espelhos nesta cidade ilhada o potencial do acontecimento, que extrapola a ordem dos “elementos teatrais” e da sua “recepção” em encontros com o teatro do ator Ney Piacentini e sua equipe de trabalho.

Dito isto, às tarefas. Mas, começo por uma “tarefa zero” – a que antecipou o cumprimento das outras três e que consiste em comentar minha preparação para realizar as que vieram depois.

Tarefa zero

Dados disponíveis num simples clique no Google (2)  informam que a dramaturgia de Espelhos tem como referência dois contos literários com igual título: O Espelho. Um deles foi escrito por Machado de Assis (1839-1908) para esboçar nada menos que “uma nova teoria da alma humana” e publicado em Papéis Avulsos, em 1882 (3). O outro, de Guimarães Rosa – escritor nascido no ano em que morreu Machado e falecido em 1967 –, foi publicado no livro Primeiras Estórias, em 1962 (4). Neste conto em primeira pessoa, alguém narra sua “experiência [...] raciocínio e intuições” sobre “um espelho”. Os dois textos homônimos estão separados na história por 80 anos.

O primeiro, de Machado, mostra um fragmento de vida de Jacobina, que conta a amigos reunidos um episódio de sua juventude em que se viu abandonado por aqueles a quem estimava e/ou amava. Na extrema solidão, diante de um espelho descobre que quem era amado e admirado não era o que ele achava que ele mesmo era – sua “essência” humana –, mas o “reflexo” superficialmente reconhecido do alferes que ele profissionalmente se tornou: uma máscara de seu “ser social”. Com ela talvez nos identifiquemos todos/as os/as brasileiros/as. Mas, ouso dizer, não apenas nós.

No segundo, de Guimarães Rosa, um personagem anônimo transita entre fatos e descobertas científicas. A partir do objeto espelho, afunda-se no reflexo e na reflexão sobre a imagem que o espelho lhe devolve: um rosto que é seu e, paradoxalmente, não é. Mas, “O tempo é o mágico de todas as traições...”. Nele aparece Narciso, o traído que configura um dos muitos emblemas do texto que, ao jogar alegoricamente com “modus de focar”, alcança o limite da experiência: “não me vi. Nada.”

A cena de Espelhos encontra na literatura de dois O Espelho suas falas e as segue, literal e rigorosamente.

Tarefa três

A tarefa mais difícil se tornou a mais fácil, para dizer bem a minha verdade. Mais que difícil, manter-me no papel de crítica isenta tornou-se impossível: trabalhei na juventude com Ney Piacentini e, no trabalho teatral (assim como em todos os autênticos trabalhos) vida e arte não se apartam. Por isso, qualquer pretensão de neutralidade do tipo “acadêmica” (o que, de resto, nunca existiu) foi antecipadamente jogada aos ares assim que a realidade do acontecimento me colocou numa poltrona ao lado de Ébano, filho do Ney.

Nunca mais havia encontrado, desde exatos 30 anos, a criança que ajudei a cuidar na década de 80 (tempo hoje aparentemente tão longínquo a ponto de os jovens de quem sou professora muitas vezes chamarem de “época”). Contudo, dentre as muitas mágicas do tempo, ocorreu a que comumente nos referimos como “parece que foi ontem” (mas, “o tempo não para”). Com Ébano, acompanhei cada gesto do ator – seu pai e meu amigo. Não sei se por alegria ou saudade, mas, com certeza somada(s) à extrema precisão da atuação, me diverti (brechtianamente falando: cientificamente consciente e afetivamente ativa) com este solo de ator, cheio de palavras.

Pude perceber como o teatro fica diferente quando acontece entre amigos/as (eu não era a única naquela plateia). Este tipo de encontro, que se tornou raro, faz sonhar com um futuro em que a “massa” seja a plateia consciente e amorosa de um ator que, depois de Espelhos, poderia (mas, não deve!) retirar-se satisfeito com seu próprio trabalho.

Se o teatro não é a arte de solucionar ou responder, e sim de colocar questões, foram muitos os diálogos  interiores e exteriores, críticos e afetuosos, entre passado e futuro – mediados por Espelhos. Logo, considero que a primeira tarefa foi cumprida.

Tarefa 2

Assistir Espelhos foi uma experiência contra a perda de experiência. Não acho que precise escrever mais sobre isto: a quem interessar, sugiro a leitura de Experiência e Pobreza, um texto curto de Walter Benjamin (5).

Tarefa 1

A cena aparece, com técnica que faz justiça à atuação. A luz de Paulo Barcellos marca e ambienta dramaticamente, além de imiscuir-se nos tempos da cena quando, por exemplo, o ator manipula os candelabros. Os figurinos de Fabio Namatame são trocados de um espelho a outro e, por assim dizer, dentro dos espelhos: roupas, um par de sapatos (se pudesse sugerir, que se gaste um pouco as solas...) deslizam a objetos cenográficos cuja “magia” dialética acontece em sua transfiguração nas mãos do ator. No cenário de Marisa Bentivegna, o tapete do primeiro Espelho é transformado num quase-tapete que também é quase-espelho, no segundo Espelho; além disso, uma mesa, cadeiras e... “Cadê” o espelho? Obrigada pela falta, cenógrafa: para mim, são “detalhes” como este que constituem uma cenografia.

O ator chega depois do público e o encara. Depois, encara um (de fato, dois) mundo textual na encenação duplicada de Espelhos. Contador de histórias, ele descreve uma cena dentro da cena. Formal, diria didático, inclui a plateia no ambiente citadino e noturno em que companheiros conversam sobre “coisas metafísicas”. A princípio calado, ao ser desafiado Jacobina aparece para contar sua própria história.

Interrompido aqui e ali pelos interlocutores invisíveis com perguntas que tem como função alavancar a atuação, Ney Piacentini conduz o personagem, seus companheiros e a plateia à perda do “cidadão” Jacobina na constatação sombria de que da figura socialmente construída nada sobrara. Encontra-se só na casa da tia, que se foi com outros parentes. Até os escravos o abandonam... Nota de Rodapé no corpo de meu texto. O conto de Machado de Assis reserva aos escravizados a imagem de derradeiro rastro de humanidade: são os últimos a abandoná-lo. Na ausência da família “proprietária”, fogem, não sem antes festejar a suposta liberdade e, em tom descabidamente coloquial, expressar a Jacobina augúrios de uma felicidade irônica: “Nhô Alferes há de se casar com moça bonita filha de general”.

Na penumbra e no tempo quase perdido – “...tic-tac-tic-tac...” –, no corpo tenso e com gestos cuidadosamente desenhados com lápis paranoico (atravessados pelo olhar calculado e sensível da diretora de Espelhos), um ansioso e “sonâmbulo” Jacobina reconhece a liquidação de sua “alma exterior”. Na busca nervosa pela outra, a “alma interior”, encontra um espelho incapaz de refleti-la em sua totalidade. Apenas quando veste a farda de alferes o espelho enfim o reconhece, e fornece o elemento necessário para o retorno de alguma vitalidade a um corpo já desgastado: aquela que permite a alternância entre os opostos da dupla alma. No fim, Jacobina se vai sabe-se lá para onde, quando “os outros voltaram a si”.

A trilha sonora entra em “modo expressionista”. Composta por Miguel Caldas e operada por Paulo Fávari, ela passa a protagonizar a cena enquanto o ator se torna contrarregra que prepara o segundo O Espelho. Nele, surge o personagem de Guimarães Rosa em um ator mais (im)positivo e afirmativo no diálogo a plateia. Faz dela sua companheira: a ela, dirige uma série de questionamentos “científicos” sobre a máscara, a fotografia, o retrato, enfim, sobre as imagens que encarnam o especular na modernidade. Depois, passa a dissecar o duplo do espelho, o olhar, guiando o público com olhos de ator épico que, ao mesmo tempo, distanciam e criam intimidade. Com a fala, retroage da reprodutibilidade técnica à antiguidade de Tirésias, que introduz a figura com quem permaneceremos até o final.

A “alma do espelho” perfaz superstições caducas – mas, nem por isso superadas – ao atravessar diversos espelhos. Num deles, aparece um Narciso moderno que produz a remissão de sua bela imagem à temerosa e repulsiva. Com o desmonte de suas vestes o ator destroça lentamente a vaidade do herói em melancolia na face que se move, metamorfoseia-se. Entre onças e serpentes, tenta encorpar uma ideia que não é a memória, e sim o espelho que lhe devolve: a ideia de uma experiência. Um laboratório complexo põe em relação dialética o espelho que não está lá e um ator em personagem que, depois de testar exaustivamente tudo o que a mente consegue formular, fala: “um dia, simplesmente olhei no espelho e não me vi.” Das profundezas da superfície especular salta a questão: em que “a vida consiste”? No final...

Basta de spoilers! A você, que “chegou a existir”, sugiro que veja com os próprios olhos. Até mais ver, Ney Piacentini!

Fátima Costa de Lima: 
Graduada em Artes Plásticas (FAAP), Especialista em Teatro (CEART-UDESC), Mestre em Educação e Cultura (FAED-UDESC) e Doutora em História Cultural (PPG em História do CFH/UFSC). Professora titular do Departamento de Artes Cênicas do CEART e do PPG em Teatro da UDESC. Atuação artística: atriz, carnavalesca, cenógrafa, figurinista e diretora teatral. Pesquisa teatro e carnaval. Teoria crítica. Espaço, imagem e alegoria em teatro político, teatro negro, movimentos sociais e escolas de samba.

(1) Consultar http://www.companhiadolatao.com.br/site/ 
(2) Disponíveis em https://www.sesc-sc.com.br/blog/cultura/sesc-em-florianopolis-prainha-recebe-a-peca-espelhos-literarios-com-ney-piacentinihttps://www.youtube.com/watch?v=S1awTFje2Uw, entre muitos outros.
(3) Disponível em file:///C:/Users/user/Downloads/O%20ESPELHO.pdf
(4) Disponível em http://www.psicanalisearacaju.org.br/Biblioteca/o%20espelho.pdf
(5) Disponível em https://monoskop.org/images/3/32/Benjamin_Walter_Obras_escolhidas_1.pdf




Espetáculo espelhos - Ney Piacentini. Foto: Mhirley Lopes.

Espetáculo espelhos - Ney Piacentini. Foto: Mhirley Lopes.

Espetáculo espelhos - Ney Piacentini. Foto: Mhirley Lopes.

Espetáculo espelhos - Ney Piacentini. Foto: Mhirley Lopes.

Espetáculo espelhos - Ney Piacentini. Foto: Mhirley Lopes.

Espetáculo espelhos - Ney Piacentini. Foto: Mhirley Lopes.

Espetáculo espelhos - Ney Piacentini. Foto: Mhirley Lopes.

Espetáculo espelhos - Ney Piacentini. Foto: Mhirley Lopes.

Espetáculo espelhos - Ney Piacentini. Foto: Mhirley Lopes.

0 Comentários


Deixe seu comentário

* Seu comentário será publicado após avaliação por moderador do SESC-SC
Sesc-SC • Todos direitos reservados © Sesc-SC • Acessibilidade (shift+alt+y) • Produzido por DNAnet

O Sesc-SC utiliza cookies e tecnologias semelhantes para fornecer recursos essenciais na proteção de dados.
Ao continuar navegando nesta página, você concorda com nossas .